sexta-feira, 27 de maio de 2011

a revolta das espicha-canivetes*

Tenho muitas amigas magras. Eu própria sou magra. Eu e as minhas amigas magras, que gostamos de ser magras e fazemos por isso – tipo evitando barrar o pão com banha de porco e tulicreme, emborcar refrigerantes (também conhecidos como “água com açúcar e corantes”), bujecas e uísques a cada cinco minutos, jantar bombons e encher o frigorífico daquelas coisas com cinco milhões de calorias que se vendem prontas a comer e que (confesso) nem faço ideia do que sejam ou ao que saibam e com as quais só tomo conhecimento nas filas das caixas, quando me distraio a ver o que os outros têm no carrinho, vamos formar um partido. O partido das pessoas magras que estão positivamente saturadas de ser maltratadas e vilipendiadas e de um modo geral massacradas por serem magras.



Esta forma de luta surge-nos como necessária, urgente e inadiável quando, após umas conversas ao acaso, geralmente em jantares -- nos quais, por incrível que pareça, comemos comida e até bebemos bebidas – concluímos sofrer todas da síndrome da magra farta de ser saudada dia sim dia sim com a frase “ai que horror estás escanzelada” acompanhada por uma careta desaprovadora, não raro a dar para o enojado. Cada uma de nós, magricelas, achava que só lhe acontecia a ela até este glorioso dia em que nos descobrimos classe oprimida, discriminada, e alvo constante de dichotes arremessados pela maioria badocha.



“Que é que se passa contigo, estás tão magra”; “Credo, qualquer dia desapareces”; “Estás doente?” – são algumas das frases mais comummente aturadas por quem não tem um metro de cintura, joelhos de hipopótamo e papada de tapir. Se é considerado de extremo mau gosto e péssima educação virarmo-nos para alguém e dizer “tens de parar de comer antes que rebentes”, “não olhes agora, mas acho que o botão do cós das calças vai saltar” ou “vi uma coisa que te devia ficar a matar, uma tenda de circo – como sabes, as riscas emagrecem imenso”, haverá alguém que me explique por que raio os magros – mais as magras, admito -- são soterrados com comentários do mesmo cariz amistoso mas de sinal inverso?



Tenho para mim que só se devem fazer observações sobre o físico se forem simpáticas – e, não tendo nada de agradável para dizer, calo-me. Se uma pessoa muito próxima me parecer necessitada de um reparo, talvez o faça, mas com cuidado. Há poucas coisas a que se seja tão sensível (toda a gente o é, sem excepção) como a reparos sobre o aspecto – e certamente não estou interessada em andar a magoar gente por desporto. Mas, parece, há quem esteja, desde que a vítima seja esguia. Ainda pus a hipótese de ser uma mania com particularidades – tipo, suceder só comigo. Sucede que, descobri, não há magra das minhas relações (e não só, vi esta semana a apresentadora de TV Ana Marques a relatar iguais tormentos) que se não queixe do mesmo. Morenas, loiras, ruivas, novas, menos novas, velhas, repenicadas e doces, cuidadas ou abandalhadas, todas andam com os nervos em franja graças aos mimos e sinceras preocupações da malta que quotidiana e prestimosamente lhes tira as medidas, avalia o peso e exara a sentença – condenatória, pois claro.



Chegou então a altura do contra-ataque. Espicha-canivetes de todo o mundo, uni-vos. A cada condoída observação sobre a vossa esqualidez, retorqui em género, compensando a leveza do vosso porte com a firmeza do arremesso. A próxima vez que alguém exclamar “Ai, que magra”, antes de fechar a boca já levou com um “Ainda bem que somos francas uma com a outra; como sei que não me levas a mal, vou dizer: estás uma bácora”. Ou “que engraçado, estava aqui a pensar que engordaste imenso desde que te conheci. Andas a tomar ração?”. Chato, hã? Pois é. Nós também achamos.



* sim, é certo que a generalidade dos dicionários só acolhe a versão 'espirra-canivetes', que tem aliás como primeiro significado 'pessoa zangada, que se irrita facilmente' (cito de memória). sucede que toda a vida ouvi 'espicha-canivetes' (aparentemente acolhido em dicionários brasileiros) e me faz muito mais sentido, para descrever uma pessoa magra, usar essa expressão, até porque o significado de espichar -- alongar, estender, esticar, fazer uma espetadinha -- é muito mais apropriado à ideia. e, o que para mim leva a palma sobre todos os outros argumentos, gosto mais assim.


(publicado na coluna 'sermões impossíveis' - de Fernanda Câncio- da notícias magazine de 10 de outubro)

5 comentários:

  1. Apoiado!
    É uma realidade ofender uma pessoa forte é mau, mas nós magras podemos ouvir tudo.
    Mas como costumo dizer "vozes de burro não chegam aos céus"

    Beijos

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  2. Mesmooo, está mais na altura de nos revoltar-mos! ;)

    Um beijinho Sus :)

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  3. Ai é tão bom ter chegado àquela altura em que peso, a mais ou a menos, não me chateia... por acaso até ando mais gordinha...estes dois aninhos a blogar... ajudam a guardar calorias... boas para os tempos que aí vêm ;)))

    Bjos

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  4. loool epa..isto é lindo e brutal!!! eu como espirra canivetes assumida e membro desde 1986, assino em baixo e junto-me à causa =D

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