quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Os miúdos não são parvos - Inês Pedrosa

A homossexualidade não é contagiosa, senhor ministro.


Se o casal que protagoniza "The Kids Are All Right" não fosse constituído por duas mulheres, o filme seria tratado como uma simples, e não muito inspirada, comédia romântica. Nem sei se seria um filme tão popular - passa neste momento nos aviões da TAP - se tivesse aquilo que, para começar, lhe falta: erotismo. Não vi as personagens interpretadas por Annette Bening e Julianne Moore trocarem um único beijo na boca, quanto mais enroladas nos lençóis.

Mas vi a personagem de Julianne Moore em acelerada combustão com um amante masculino - e assisti ao filme na versão de avião, que normalmente corta os arroubos lúbricos, penso que com o intuito de, como diria o nosso ministro da Presidência, "favorecer o desenvolvimento da criança". A interpretação das relações passionais entre mulheres como historinhas de água e açúcar, com muita cumplicidade e companheirismo e quase sem sexo, representa, mais do que uma ilusão, uma visão das mulheres como seres diminuídos, incompletos. Nem os homófobos assumidos (pouquíssimos, porque a homofobia com fumos de tolerância está mais na moda e rende muito) desconsideram assim as relações homossexuais entre homens: são contra (vá lá saber-se o que leva as pessoas a serem "contra" a vida íntima dos outros), mas pelo menos consideram-nas relações a sério.

Nas mulheres, nada ainda é levado realmente a sério - por isso se acha normal que ganhem menos do que os homens, que o acesso aos lugares de poder lhes seja tão difícil, que trabalhem o dobro e que tenham que demonstrar "qualidades morais" que ninguém exige aos homens. O mundo delas é o da fantasia e do amor infinito a fundo perdido, onde o sexo só entra quando um macho se apresenta.

Porém, embora este filmezinho seja leve, pudico no que respeita ao sexo lésbico, fraquinho de enredo e pobre nos diálogos, talvez sirva para retirar a primeira camada de arcaísmo ao cérebro de Pedro Silva Pereira. Miguel Vale de Almeida foi apenas correcto e factual ao definir através da palavra "ignorância" a justificação do ministro da Presidência sobre a não permissão do Governo para o apadrinhamento de crianças por casais homossexuais. A justificação foi esta: "As condições sociais não favorecem o desenvolvimento da criança nem a sua inclusão social." Esta mesma justificação era apresentada pelas famílias brancas, há poucas décadas, para demover os seus membros de adoptarem crianças negras. Não se tratava de serem racistas: tratava-se apenas, explicavam... de contar com o racismo ainda existente na sociedade.

As crianças são o bode expiatório mais cómodo que há: quando os adultos têm dificuldade em enfrentar os seus preconceitos ou limitações, desculpam-se com as crianças. Por isso se afadigam a instilar-lhes ideias feitas sobre a vida e as relações humanas, desde a mais tenra infância, evitando que usem as suas imensas e virgens cabecinhas para fazer aquilo que tanto repugna aos adultos: pensar. Proponho que se faça um referendo nas escolas perguntando aos infantes se preferiam crescer nas camaratas de uma instituição (mesmo sem Bibis e o seu cortejo de predadores) ou com um casal de homossexuais que lhes desse carinho e condições de vida. Curiosamente, a questão do direito de cada criança ao conhecimento da sua identidade biológica, que me parece essencial, não parece pôr problemas a ninguém - talvez porque extravasa o papão da homossexualidade: quando acabaram os filhos ilegítimos abriram-se os bancos anónimos de esperma, que retiram às pessoas o direito à informação sobre a sua história biológica. Só as aparências importam.

Em primeiro lugar, sabe o ministro da Presidência quantos homossexuais são já padrinhos ou pais adoptivos de crianças? Não pode saber, porque a orientação sexual não faz parte - felizmente - do bilhete de identidade. O fantasma que mora debaixo desta preocupação com "as condições sociais" é o de que os filhos de homossexuais sejam entendidos como - ou conduzidos a - tornarem-se, eles próprios, homossexuais. Dou uma novidade estatística ao senhor ministro: todos os homossexuais existentes nasceram de casais heterossexuais. Muitos deles têm irmãs e irmãos heterossexuais. Se pensar um bocadinho nisto, verá que tem de reformular as suas ideias sobre as "condições sociais". A vida é sempre mais variada e surpreendente do que imaginamos. No terceiro milénio, já é mais do que tempo que nos habituemos a isto. E que nos deixemos de desculpas para discriminações - que são particularmente graves quando afectam aqueles que não têm voz nem capacidade de defesa, como as crianças.
 (Texto de Inês Pedrosa publicado na revista Única de 27 de Novembro de 2010)

4 comentários:

  1. Grande texto e já agora só quero acrescentar que este mundo anda completamente estragado por ser governado, maioritariamente, por homens ou algumas mulheres que, apenas, os tentam imitar.
    Quais as coisas mais importantes para, a grande Maioria, dos homens?
    Poder, sexo, dormir, comer e futebol ;)))))))
    De certeza que as mulheres tentam ensinar mais qualquer coisa às crianças e sabem fazer verdadeiros milagres orçamentais na economia doméstica ;)

    Bjos

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  2. Olá,

    adorei o texto. Acho que fiquei a gostar um pouco mais da Inês Pedrosa agora, :P . A minha opinião é bastante parecida à dela, quem trabalha de perto com crianças consegue logo ver as falácias desses discursos pseudo-moralista sobre as adopções.

    Beijo neste fim de feriado,

    até sexta.

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  3. Texto a preceito,e com conceito...e por acaso conheci gente que faz das canções gritos de revolta contra tais situações...passa pelo "outro lado",e partilha dessa gente boa,que como tu é bem vinda!

    Bj*

    Bom feriado

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  4. muito interessante este texto.
    Boas festas :)

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